Quem examine o panorama sócio-moral da Terra, apressadamente, tem a impressão de que a grande nave que veleja pelo Infinito segue sem rota, sem timoneiro1 capaz.
A miséria estampa em toda a parte a máscara e o esgar2, que a identificam como se estivesse triunfante, soberana invencível.
O galope desenfreado do sofrimento lembra fantasmagorias imaginadas por mentes exacerbadas.
Calamidade, injustiça, sensualidade são lugares comuns onde quer que nos encontremos.
E diante de tanto desequilíbrio, expressões convincentes de honradez esboroam-se3 ao impacto das circunstâncias; eloqüentes atestados de fé esfacelam-se ao contacto dos testemunhos; incontestáveis servidores do bem debandam ante a avassaladora invasão surgindo o campo ermo, que se afigura domicílio de trasgos4 que escarnecem, zombeteiros, dos esforços de quantos perseveram...
Esse o nosso domicílio enquanto na viagem carnal; esse o solo pantanoso a drenar, a gleba5 a arrotear6, ao chamado do Cristo, cuja voz ressoa na acústica da alma.
Quem escutou o chamado do Cristo não desfruta de paisagens ridentes coroadas de sol, nem de noites formosas vestidas de estrelas.
Caminha muitas vezes a sós, na multidão, cantando a melopéia7 da tristeza, em trismos8 de agonias vigorosas.
Tem os passos seguidos e, buscando repouso, desperta a cada instante convidado pela aflição.
Incompreendido invariavelmente, vê os sonhos convertidos em pesadelos.
Desejando melhorar a paisagem de sombras, sofre o confronto decepcionante do que faz com o que dizem foi feito.
Buscando refúgio na família consangüínea sente-se estranho.
Abraçando a grande família humana, vê-se renegado.
Parece não haver lugar, na Terra, para quem ouviu o chamado d'Ele.
No entanto, é imperioso que mantenhas incorruptível o ideal de amar e servir atendendo-lhe à voz.
Ninguém considerará o teu esforço, mas diante de ti está a lição da semente desconsiderada, consolando-te em silêncio.
Ninguém te entenderá, porém canta ao teu lado o córrego uma mesma balada a confortar-te.
Ninguém te respeitará, todavia, sofrendo, o grão de trigo fala a mesma linguagem de compreensão.
Insta9 no bem, ouvinte do Cristo, e unge-te de amor pelos homens da Terra que voluteiam sob o comando divino para os rumos superiores da vida.
Não desfaleças nem desesperes.
Um dia que não tardará muito, reclinarás, cansado, a cabeça enovelada10 pelos problemas e arrebentando de aflição, em busca de justo repouso. Repassarás as agonias das pelejas e reverás as horas idas, em mágico cinemascópio evocativo. Quando as lágrimas brotarem copiosas quais dádivas do solo farto, na primavera do teu coração e escorrerem quentes, suave torpor11 paralisará as atividades do teu corpo suado e vencido, e então plainará, além e acima de todas as vicissitudes, renovado e feliz, seguindo para Jesus Cristo, ouvindo o Seu chamado...
Joanna de Ângelis
Livro: Dimensões da Verdade [Divaldo P. Franco]
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timoneiro - guia; chefe; patrão.
esgar - careta de escárnio (zombaria, galhofa); trejeito de rosto.
esboroar - converter-se em pó; desfazer-se em pedaços; cair aos bocados, arruinar-se.
trasgo - aparição fantástica; duende; pessoa traquina.
gleba - terreno próprio para cultura; terreno que contém minério; terreno feudal.
arrotear - desbravar; escavar para afofar a terra; (fig.) educar.
melopéia - toada; eufonia; declamação agradável ao ouvido.
trismo - impossibilidade de abrir a boca, devido à contracção espasmódica dos músculos mastigadores.
instar - pedir com encarecimento; solicitar; insistir.
enovelada - enrolada; arredondada; (fig.) confuso.
torpor - estado de inatividade física e mental; entorpecimento; indiferença ou inércia moral.
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